A degradação humana em “São Bernardo” (Leon Hirszman, 1972)
Hoje terminei a leitura de “S. Bernardo”, de Graciliano Ramos, e quase imediatamente pus em prática algo que eu já planejava fazer há muito tempo: assistir a adaptação cinematográfica de Leon Hirszman. É difícil pra mim dizer o que me despertou interesse antes, o livro ou o filme homônimo. Fato é que, seguindo o caminho mais tradicional, me enveredei pela leitura do texto-fonte antes de assistir a adaptação.
A trama do livro é desenvolvida de forma bem direta na prosa de Graciliano Ramos: somos apresentados à história de Paulo Honório, um trabalhador braçal de origem pobre cujo objetivo de vida é comprar a opulenta fazenda S. Bernardo, no interior de Alagoas, onde ele anteriormente trabalhara carpindo o solo por um salário de “cinco tostões por doze horas de trabalho”. Uma vez atingido esse objetivo, Honório se torna um fazendeiro violento, explorador e inescrupuloso, cuja truculência dos modos se estende à todos que estão ao seu redor, desde sua esposa, Madalena, até seus subordinados em S. Bernardo. A narrativa é preservada de forma meticulosa na adaptação cinematográfica.
Partindo do princípio de que a qualidade de uma adaptação não está necessariamente atrelada à sua fidelidade ao material basilar, o grande mérito de Hirszman aqui é a forma como ele constrói um filme completamente atmosférico através de tudo, seja pela estética e plasticidade de suas imagens (fotografadas com maestria por Lauro Escorel, em um de seus melhores trabalhos — cada frame aqui é digno de ser ampliado e enquadrado na sala de estar ou no escritório), seja na crueza de sua mensagem ou pelo magnetismo das atuações — com destaque, evidentemente, para o Paulo Honório de Othon Bastos, ora explosivo, ora contido, e progressivamente mais monstruoso e autodestrutivo, e para a Madalena de Isabel Ribeiro (a sequência da igreja ao fim do filme possui um plano completamente centrado nela — no sentido imagético e figurativo — e é um dos momentos mais brilhantes de sua atuação discreta, porém poderosa).
Se Othon Bastos teria dito que Paulo Honório foi o papel favorito de sua carreira, o motivo para isso é bem claro. O papel exige muito mais do ator do que apenas gritar e fazer cara feia. Paulo Honório é um personagem em formação. Uma formação negativa, de degradação humana, de monstruosidade. O próprio personagem reconhece isso, e se vê dessa forma monstruosa tanto interior quanto exteriormente — no monólogo final do filme, ele descreve com pavor o quão grande são sua boca, seu nariz e seus dedos. Quanto mais selvagemente capitalista Paulo Honório se torna, mais sua humanidade se esvai, mais mesquinho, mais agressivo, mais insensível ele acaba sendo, até que a metamorfose em monstro se completa de forma irreversível e com consequências irreparáveis.
Paulo Honório é um utilitarista. Instrumentaliza suas relações desde o início da história, e é através dessa implacabilidade que consegue subir na vida, se empossar de S. Bernardo e alcançar seu posto enquanto uma figura de poder. Despreza um tratamento cordial aos empregados, uma relação afetuosa com a esposa (que ele, assumidamente, desposou com mero propósito de gerar “um herdeiro para as terras de S. Bernardo”) e até mesmo com o próprio filho — desprezado a ponto de sequer aparecer em tela durante um segundo sequer de filme, sendo quase completamente apagado da narrativa por uma pura e simples indiferença paterna que o julga, a rigor, como alguém (ou algo) inútil.
Acaba sendo uma adaptação quase que integralmente fiel ao romance de Graciliano Ramos, inclusive com a narração em primeira pessoa do livro tornando-se aqui uma narração em off (que funciona bem, e não se torna uma muleta narrativa ou um recurso narrativo pobre). “S. Bernardo”, o livro, está dentro do filme da primeira à última página. Mas felizmente, Hirszman como cineasta sabia que o projeto tinha em si um potencial muito maior do que ser apenas uma adaptação literária burocrática.
Não consigo deixar de comparar — e eu sei, esse tipo de comparação é fútil, mas somos todos humanos e fadados à eventuais futilidades — esse filme com “Gabriela” (1983), de Bruno Barreto. Os dois filmes, em teoria, possuem certas similaridades: ambos são adaptações cinematográficas de clássicos de nossa literatura, mais especificamente obras da segunda geração do modernismo. Na prática, os filmes não poderiam estar mais distantes um do outro.
A adaptação da obra de Jorge Amado lava a história original de qualquer sabor, subtrai a crônica de costumes da trama e a reduz a algo simples e sem sal, inexpressivo e que ainda assim dá tropeços na própria burocracia. “São Bernardo”, de Hirszman, é um filme muito mais saboroso, que não apenas transcreve a obra de Graciliano para a tela de forma rigorosa, como também sabe o que fazer com aquilo, e constrói um filme competente, de ritmo bem pensado (intenso quando precisa ser, “slow cinema” quando o clima pede), interessante e com algo a dizer. Apesar de não trazer muitas diferenças do texto-fonte em sua narrativa, possui uma abordagem tão arrojada e inusitadamente autêntica da história que consegue trazer um novo frescor ao texto de Graciliano, prendendo a atenção do espectador até o último plano mesmo quando este já sabe como a história irá se desenrolar.
Talvez o que separe Hirszman de Barreto seja sua sensibilidade social. Apesar de ser oriundo de uma classe média intelectualizada (como, diga-se de passagem, praticamente todo o movimento do Cinema Novo, quando analisado de forma pragmática), ele mostrou, em todas as possibilidades que lhes foram dadas em sua vida tragicamente curta, um tato para com abordagens de cunho social que poucos dentre os cinemanovistas tinham (até mesmo o “intocável” Glauber Rocha possui certa insensibilidade para com as religiões afro-brasileiras e a questão do negro em “Barravento”, e visões sobre o trabalhador rural que podem ser consideradas reducionistas). Hirszman figura entre os mais lúcidos nesse sentido, ao lado de Nelson Pereira dos Santos, e coincidentemente, ambos adaptaram a obra de Graciliano com maestria — Nelson, de forma célebre, em “Vidas Secas” (1963).
Sendo a questão social uma das principais preocupações de nosso segundo modernismo literário, não é de se admirar que as melhores adaptações de obras como “S. Bernardo” ou “Vidas Secas” venham justamente de cineastas que consigam ter essa sensibilidade. Não a toa o filme, assim como seu texto-fonte, aborda a questão do materialismo histórico de forma bem incisiva (Paulo Honório olha para o chão, pensativo, visivelmente confuso, enquanto reflete: “materialismo histórico…?”). A mensagem fortemente anti-capitalista do livro é transportada para a tela de forma sensível, porém ácida.
Não apenas um excelente filme, é também uma aula de adaptação. Por mais filmes como “São Bernardo” e (por mais que me doa dizer isso) menos filmes como “Gabriela”.