“Adeus, Lênin… olá, Regan” — Uma análise dos aspectos de consumo, cultura e valores no filme “Adeus, Lênin!” (2003), de Wolfgang Becker (06/10/2017)

Igor Nolasco
5 min readJul 26, 2021

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[Encontrei hoje alguns textos breves sobre cinema que escrevi no começo da faculdade. Considero-os, sob minha ótica atual, simplórios, primários; se apoiam em referências no mínimo canhestras, com um excessivo apego ao roteiro que só pode ser justificado por esta ser minha aspiração profissional à época. O texto a seguir é relativo a esse período.]

“Mr. Gorbachev, tear down this wall!” — As palavras proferidas pelo então presidente estadunidense Ronald Regan definiram o momento de término simbólico da dita Guerra Fria¹. A queda do muro de Berlim foi um evento histórico, destruindo a barreira literal que dividia a Alemanha em duas e representava a oposição do mundo ocidental capitalista com o oriental socialista. Com as políticas de Glasnost (“Transparência”, em tradução livre”) e Perestroika (“Reestruturação”), que iniciaram a gradual abertura da URSS ao estilo de vida capitalista², o rompimento da chamada “MAD” (“Mutually Assured Destruction” — “Destruição Mutuamente Assegurada”)³ selando o fim do conflito indireto parecia inevitável, e de fato as palavras de Regan foram obedecidas em um célebre dia de novembro de 1989.

A queda do muro foi o baque final da dissolução da URSS, mas para o personagem Alex (Daniel Brühl), do filme Good Bye, Lenin!, é apenas um peso brutal na quantidade de desastres que vinha se acumulando em suas costas. Sua mãe, Christiane (Katrin Saß), é uma socialista fanática, tendo se dedicado inteiramente à sua ideologia e ao seu país após o desaparecimento aparentemente misterioso do pai da família. No roteiro de Wolfgang Becker e Bernd Lichtenberg — transcrito de forma quase integral para o filme — Alex define a paixão de sua mãe pelo comunismo após o sumiço do pai:

A partir desse momento, minha mãe se casou com nossa pátria socialista. Como essa relação não era sexual, havia muito vigor e energia de sobra para nós, crianças, e a para a rotina socialista diária.

A grande reviravolta do filme ocorre quando, após um infarto, a mãe de Alex entra em um coma que dura por meses e, ao acordar, a Alemanha mudou: o muro caiu, e Gorbachev já elevou sua Perestroika e seu Glasnost ao nível máximo. O mundo que Christiane amava não existe mais: agora, é possível encontrar propagandas da Coca-Cola na Berlim ocidental. Porém, decidido a atender a recomendação do médico em tomar cuidado para que a mãe não passe por situações de choque extremo que possam causar um segundo — e fatal — infarto, Alex decide falsear para sua mãe, que por motivos de saúde está inicialmente confinada em um quarto, a impressão de que nada no status político do país mudou.

A partir daí, o filme se estrutura em um estabelecimento de problemas e soluções, como o desejo da mãe por uma marca de picles que não existe mais, o vislumbre de um banner da Coca-Cola pela janela, e situações análogas que Alex contorna com a ajuda de um amigo, com quem faz um falso telejornal que é exibido para a mãe através de videoteipes que simulam uma exibição ao vivo.

A construção da realidade pré-queda do muro, falseada pelo protagonista, é parte importante para o filme, sendo literalmente vital para manter sua mãe viva, e a cultura material da Alemanha oriental é parte integral disso, como na supracitada marca de picles em conserva, nos programas de TV vistos pela mãe e pelos vizinhos (que podem ser ouvidos do quarto da matriarca) e até mesmo pela mobília do apartamento, que teve que ser resgatada para fazer com que ele novamente se assemelhasse ao que era antes da tecnologia e do estilo de vida que adentrou a vida dos personagens que ali vivem após o fim da URSS.

O dinheiro da antiga Alemanha oriental resgatado de um estoque secreto da mãe, que Alex descobre ser inválido, é um ponto importante. O protagonista descobre que perdeu o prazo de troca desse dinheiro pela nova moeda vigente, tornando uma quantia sumária de bolos de notas completamente inválida — ela é posteriormente atirada aos poucos do terraço de um prédio. Com a impossibilidade de troca daqueles bens, eles tornam-se expirados, representantes de uma realidade agora inutilizada — o retrato decadente da findada Alemanha ocidental. O mesmo pode ser dito com os móveis trocados após o retorno da mãe — após ser ocupado ostensivamente pelo luxuoso American way of life, a recriação da versão enxuta do ambiente para enganar Christiane parece simplista, triste.

Isso serve para retratar bem como o consumo é visto no oriente e no ocidente: antes, era visto como uma forma de suprir nada mais do que as necessidades. O apartamento possuía uma mobília sóbria, discreta — a única peça decorativa no cenário a chamar atenção era um retrato de Che Guevara que a mãe de Alex mantinha em seu quarto. Após os costumes da família se ocidentalizarem, o local ganha muitas cores, e até mesmo o que parece ser uma cama de bronzeamento artificial pode ser vista em uma cena. Esse choque de cultura pode ser exemplificado na cena em que Christiane finalmente, na ausência do filho, aventura-se em sair do prédio pela primeira vez após o seu regresso, e se depara, em uma venda de móveis usados, com um abajur rosa felpudo que lhe causa visível estranhamento. Ela está tão distante daquela nova realidade que Alex se desespera ao constatar que ela descobriu a existência da Coca-Cola na Alemanha ocidental, e através de seu noticiário falso, bolou uma falsa história de que origens comunistas supostamente teriam sido descobertas para o famoso refrigerante. O resultado é uma sequência que mostra o protagonista e sua mãe deitados na cama assistindo o pseudo-telejornal, enquanto a mãe pergunta, em um tom que mistura surpresa com dúvida e susto: “A Coca-Cola é uma bebida socialista?!”.

Sucesso de crítica e público, sendo até mesmo elogiado pelo exigente e famoso crítico norte-americano Roger Ebert⁴, “Adeus, Lênin!” é talvez um dos mais aclamados filmes do cinema alemão contemporâneo — junto com “A Onda”, de 2008 — e, conforme desenvolvido ao longo desse texto, um interessante objeto de análise para falar sobre cultura e consumo.

BIBLIOGRAFIA

¹ FISHER, Marc. ‘Tear down this wall’: How Reagan’s forgotten line became a defining moment. Disponível em <https://www.washingtonpost.com/news/retropolis/wp/2017/06/12/tear-down this-wall-how-reagans-forgotten-line-became-a-defining-presidential moment/?utm_term=.a731ad7005ff>. Acessado em: 01/10/2017.

² SULLIVAN, Nate. Gorbachev’s Policies of Glasnost and Perestroika: Explanation and Significance. Disponível em: <http://study.com/academy/lesson/gorbachevs-policies-of-glasmost-and perestroika.html>. Acessado em: 01/10/2017.

³ ŽIŽEK, Slavoj. Catastrophes Real and Imagined. Disponível em <http://www.lacan.com/zizekcatastrophes.htm >. Acessado em: 01/10/2017.

⁴ EBERT, Roger. Goodbye, Lenin!. Disponível em <http://www.rogerebert.com/reviews/goodbye-lenin-2004>. Acessado em: 02/10/2017.

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Igor Nolasco

Página atualmente dedicada a reunir minha produção de textos sobre cinema que, hoje, não encontram-se mais disponíveis em seus veículos originais.