“Amor, Estranho Amor” (1982) — Crítica (22/07/2020)

Igor Nolasco
4 min readFeb 27, 2021

Texto originalmente publicado no extinto portal Utopique, em 22/07/2020.

“Quem não viu [Amor, Estranho Amor], veja o filme, gente, é um filme muito legal”. Quando Xuxa deu esta declaração, neste ano, em uma entrevista com Otaviano Costa, muitos não acreditaram, afinal, ela passara as últimas décadas em uma cruzada feroz contra o longa-metragem lançado em 1982, chegando inclusive a proibir a comercialização e a distribuição legal da obra em território nacional. A razão por trás desse embate está na participação da Rainha dos Baixinhos, a qual interpreta uma garota de programa que se relaciona sexualmente com uma criança. Realizado antes dela começar a produzir conteúdo para o público infantil, o longa adquiriu um ar folclórico dentro da cinematografia brasileira, mesmo sendo pouquíssimo assistido.

Por bem ou por mal, Amor, Estranho Amor tornou-se o nome mais conhecido da extensa obra de Walter Hugo Khouri. Ambientado em um casarão que anteriormente servira como um bordel de luxo, o longa acompanha a história de Hugo (Walter Forster), que entra em um longo processo regressivo ao revisitar o local. Através dessas reminiscências, o espectador acompanha o pequeno Hugo (Marcelo Ribeiro) sendo trazido por sua avó, com quem vivia, até a sua mãe (Vera Fischer), que trabalhava no bordel. Tudo isso ao longo dos dias que antecederam o golpe do Estado Novo, em 1937.

Naquele ambiente, Hugo descobre que sua mãe é a mulher favorita de um prestigioso político, dr. Oswaldo (Tarcísio Meira). No decorrer dos dias que passa no casarão, o garoto perambula pelos corredores como um espectro, sendo testemunha ocular das atividades dúbias que permeiam os salões. Não apenas no que é associado, de imediato, ao ambiente, mas também nos tratados que são firmados por debaixo dos panos em um local tão inesperado. Ali, políticos e figuras importantes da sociedade discutem os rumos do país. Entre quatro paredes, fazem e falam coisas que não poderiam cruzar os limites daqueles portões. E é por esses cômodos que Hugo transita, uma criança perdida que não pode ficar sob os cuidados de sua própria mãe.

A descoberta da sexualidade de forma precoce ocorre no contato com tudo o que é praticado no casarão. Inicialmente, o personagem é isolado em um cômodo à parte, e há um esforço de afastá-lo dos demais quartos, mas quando ninguém está olhando ele põe-se a perambular. Durante suas errâncias fantasmagóricas, cuja atmosfera etérea é potencializada pela trilha sonora de Rogério Duprat, vê coisas que jamais seria capaz de imaginar, como as moças que habitam o bordel junto a políticos e fidalgos. Nem mesmo sua própria mãe está imune a esse processo de descortinamento do real propósito do casarão: Hugo a vê na banheira, com um dos clientes habituais do local. Diante de todo esse processo traumático, não reage com choro ou com gritos: seu choque é manifestado por um silêncio catatônico, que Khouri capta por meio do enfoque, em diversos momentos, nos olhos azuis da criança.

Em alguns momentos, Hugo é descoberto pelas mulheres do ambiente. Percebendo seu choque, tentam instigá-lo, exibindo seus corpos ou estimulando o garoto a tocá-las. É em um desses momentos que encontramos a sequência mais famosa do filme, na qual a jovem Tamara, personagem de Xuxa, aproxima-se gradualmente da criança até conseguir seduzi-la. O momento controverso é interrompido bruscamente pela personagem de Vera Fischer. Tamara rebate, exaltada, proferindo palavras que soam como uma maldição que viria a castigar o destino de Hugo: por mais dedicada que fosse, a mãe não conseguiria preservar a inocência de seu filho para sempre.

O trauma é o choque, a inabilidade da reação, um congelamento que visto de fora pode ser confundido com voyeurismo e, sob essa perspectiva, se confunde com o próprio papel do espectador cinematográfico. Assim como Hugo, somos atacados pela ação do filme, que em momento algum retrata as práticas do bordel com um tom convidativo de erotismo, mas sempre com um estranhamento desconfortável. Temos ciência de que aquilo não está certo, e Khouri deixa isso bem claro.

Após os pedidos de Xuxa para que o filme fosse retirado de circulação nas décadas seguintes, Amor, Estranho Amor passou a ser comumente referido como uma “pornochanchada” — palavra que designa um tipo de comédia erótica popularesca, populares entre as décadas de 1970 e 1980 no cinema brasileiro. Essa designação não poderia estar mais distante da verdade, uma vez que de “pornochanchada” o longa não tem nada. Trata-se, no fim das contas, de um drama carregado sobre sexualidade e trauma, que, não obstante, retrata um momento conturbado da história do Brasil através de um processo regressivo pessoal.

Amor, Estranho Amor é um filme complexo, que se debruça sobre diversas questões, parte delas tabus tanto hoje quanto nos anos 1980. Acaba, entretanto, não alcançando tudo o que almeja de forma efetiva. A trama de Hugo e as subtramas políticas (personificadas pela figura de Dr. Oswaldo) apresentam dificuldade de se desenvolver em paralelo, e acabam truncando o andamento uma da outra, fazendo com que o filme possua um notável problema de ritmo — ao qual não estão imunes outros longas do diretor. Por mais que retrate o que ocorre no bordel de forma nitidamente reprovável, Khouri pode ser acusado de usar os momentos em que Hugo assiste às atividades da casa de forma a instrumentalizar o choque, explorando-o de forma gráfica. Não deixa de ser uma acusação válida. O objetivo do cineasta, no entanto, não parece ser o choque pelo choque.

Bem sucedido ou não, Khouri explora temas sensíveis a fim de elaborar um filme denso, psicológico, que tem como escopo as memórias de um tempo passado, mas não em branco. De igual maneira, Amor, Estranho Amor certamente não passou despercebido pela história da cinematografia brasileira. Se fosse menos objeto de rumores tendo como base sua sequência mais polêmica, que é alardeada de forma distorcida e até sensacionalista, o longa poderia ser objeto de debates muito diferentes dos que andou protagonizando nas últimas décadas.

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Igor Nolasco

Página atualmente dedicada a reunir minha produção de textos sobre cinema que, hoje, não encontram-se mais disponíveis em seus veículos originais.