Antena da Raça (2020) — Crítica

Igor Nolasco
5 min readOct 5, 2021

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Integrando a programação da corrente edição de 2021 do REcine — Festival Internacional de Cinema de Arquivo, que segue o tema “a memória do cinema brasileiro”, está um documentário que chega ao evento carioca tendo a bagagem de uma participação no Festival de Cannes. “Antena da Raça”, dirigido por Luís Abramo e Paloma Rocha, evoca tal temática da memória da cinematografia nacional justamente através de um de seus mais celebrados cineastas: Glauber de Andrade Rocha.

Sejamos justos: o foco aqui não é Glauber por si só, ou mesmo Glauber como um todo, e nem mesmo sua riquíssima e múltipla obra cinematográfica, crítica, teórica, literária. Todas essas facetas do diretor vem sendo suficientemente bem documentadas por livros e filmes desde o seu falecimento, em agosto de 1981. O que “Antena da Raça” visa investigar é uma passagem específica da trajetória glauberiana: seu período à frente do Programa Abertura, na hoje extinta TV Tupi, entre 1979 e 1980.

No que pese a falta de familiaridade do espectador em relação ao programa propriamente dito, o longa faz bem em contextualizar devidamente seu surgimento e suas características gerais — e é feliz em não investir tempo demasiado de sua minutagem nisso, fazendo-o através de cartelas simples e efetivas. Também toma a sábia decisão de não fugir ao incontornável episódio mais conhecido do Abertura: o fatídico dia em que, ante à estreia do “Super-Homem” de Richard Donner em terras brasileiras, o homem por trás de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “Terra em Transe” iniciou o episódio em um apelo para que os pais de família do país protegessem seus filhos contra o imperialismo norte-americano; com máscaras de plástico representando criaturas da cultura pop estrangeira, como o monstro de Frankenstein, ele as contrapõe com a brasilidade de Severino, figura anônima que participou de alguns programas do Abertura e que Glauber evocava para representar o proverbial sertanejo euclidiano, o homem comum e inerentemente brasileiro e popular. Se o trecho supracitado só vai aparecer do meio para o fim do filme, ainda assim ele se faz presente de modo a ancorar um público minimamente familiarizado com o Abertura — afinal, trata-se de um dos vídeos mais conhecidos de Glauber.

As imagens de arquivo do programa são, de fato, a joia da coroa em meio ao conteúdo que “Antena da Raça” apresenta, ainda que a produção não se constitua exclusivamente delas — é possível dizer, mesmo, que fazê-lo seria, sob certos aspectos, limitador. Especialmente tratados para o filme, os vídeos dão uma visão panorâmica de fases diversas do programa, em preto-e-branco e colorido, que mostram Glauber fazendo seus famosos monólogos, falando sobre política, arte e sociedade, entrevistando celebridades como Caetano Veloso, homens do cinema como Luiz Carlos Barreto e pessoas anônimas pelas ruas — inesquecível o segmento no qual o cineasta anuncia que irá entrevistar Brizola e a câmera da Tupi, ao invés de se direcionar à conhecida figura do caudilho gaúcho que governou o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro, surpreende ao enfocar um ilustre desconhecido: Brizola, morador do bairro de Botafogo, a quem Glauber dirige uma série de questões sobre ditadura, democracia e sindicalismo.

Algumas das personalidades mais notórias a aparecerem nessas imagens de arquivo são revisitadas no presente (o longa parece ter sido filmado em 2018, às vésperas das eleições presidenciais daquele ano): os supracitados Caetano e Luiz Carlos Barreto, o diretor teatral José Celso Martinez Corrêa e outros nomes que fizeram parte da história da arte brasileira são, décadas após suas aparições no Abertura, convidados a refletirem sobre aquelas imagens, sobre Glauber, sobre as mudanças do Brasil nesse meio tempo, sobre o presente e sobre o futuro. Figuras que dialogam com a trajetória pessoal de Glauber (a atriz e diretora Helena Ignez, além da própria cineasta Paloma Rocha) ou com a história sociopolítica do país (José Dirceu) também se fazem pontualmente presentes. A sequência na qual Dirceu aparece, inclusive, é sintomática para que se ilustre alguns movimentos feitos ocasionalmente por “Antena da Raça”: entrevistado em estilo de conversa informal, é filmado sentado no banco do carona frontal de um carro, a câmera no de trás. Sua entrevista é posta em tela imediatamente após o uso, como imagem de arquivo, de um trecho de “Terra em Transe”, no qual discutem, também num veículo em movimento, Glauce Rocha e Jardel Filho, ao volante. O longa de Luís Abramo e Paloma Rocha por vezes se interessa em fazer essa justaposição entre imagens do presente e registros cinematográficos ou televisivos.

Por falar em presente, “Antena da Raça” não foge do seu: uma porção generosa do filme, sobretudo em sua metade final, é dedicada a se debruçar sobre o contexto social do momento em que a produção estava acontecendo: é entrevistado um ambulante que vende camisetas a favor e contra (o então candidato) Jair Bolsonaro; são filmadas manifestações e protestos; um homem negro fala sobre a ainda sólida presença do racismo enquanto empecilho na vida pessoal e profissional dos negros no Brasil (justaposto com uma sequência de “Câncer”, que aborda a mesma questão). O longa não apenas faz uma retrospectiva do programa Abertura: reflete sobre como questões tocadas por Glauber à época da abertura política da ditadura militar se refletem no século XXI, ou voltam a ele décadas depois, de maneira cíclica.

Fazendo esse exercício de resgatar o Abertura com um pé nos anos 1970–80 e outro na realidade concreta, “Antena da Raça” se firma como algo além dos inúmeros documentários sobre Glauber (que também não são, de maneira alguma, destituídos de méritos próprios). Para além de apresentar uma valiosíssima curadoria de imagens de arquivo, faz questão de mostrar, por meio destas, o maior número de facetas do diretor possíveis — inclusive uma que muitos desconhecem ou da qual se esquecem, a de que, ante à abertura política, Glauber se posicionava enquanto um entusiasta militante pela abertura institucional, não poupando críticas à mentalidade de seus companheiros de geração e elogios a figuras como o então presidente João Figueiredo.

O trabalho de Abramo e Paloma Rocha contempla tudo isso, mas também vai além: utiliza o período do mais famoso cineasta brasileiro no comando do programa na TV Tupi como uma janela para entender o Brasil de então e o de agora. Entende o melhor aspecto do pensamento glauberiano: o de que, apesar de estar inerentemente atrelado a determinados períodos e perspectivas, ele é essencialmente atemporal, mutável, fluido, inteligente e autocrítico. Faz justiça a Glauber, a seus filmes, seu programa e seu pensamento. E põe em tela, de uma forma toda sua, a questão da memória no cinema brasileiro.

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Igor Nolasco

Página atualmente dedicada a reunir minha produção de textos sobre cinema que, hoje, não encontram-se mais disponíveis em seus veículos originais.