Evoé: os últimos filmes de Carlos Reichenbach (22/05/2022)

Igor Nolasco
8 min readOct 16, 2023

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Texto originalmente publicado pela revista digital Imagem e Palavra, em 22/05/2022, em sua 2ª edição, sob a rubrica “Nosso Cinema Contemporâneo”.

Num dia ensolarado como qualquer outro, Torres, um homem (magro, de meia idade, ar de boêmio espirituoso, não obstante endurecido pela experiência de vida), flana a caminho de uma pastelaria chinesa em São Paulo, quando tem seu trajeto interrompido pela visão de um sujeito desesperançoso (terno e gravata desalinhados, ar de burocrata frustrado, olhar vazio) prestes a se jogar do Viaduto do Chá. A tentativa de suicídio é interrompida pelo transeunte, que segura o outro, bruscamente, e o leva consigo em sua caminhada rumo à lanchonete, na tentativa de lhe acalmar os ânimos. Na (antológica) “Pastelaria Espiritual”, com nome gravado em letreiros neon, o homem salvo se vê em meio à preparação de uma canhestra (porém espirituosa) festa de lançamento de um livro de poesia assinado por Torres em parceria com Xavier, um amigo de longa data. O que segue são reminiscências sobre essa amizade, da qual o estranho interceptado no Viaduto do Chá é pouco mais que espectador, que testemunha relatos ricos e diversos sobre aquelas vidas entrelaçadas há décadas em contraponto com o presente.

Evoé! Assim começa “Alma Corsária”, primeiro longa-metragem assinado por Carlos “Carlão” Reichenbach na década de 1990 e que, de certa maneira, pode ser visto como o pontapé inicial do período derradeiro de sua filmografia. Após o filme supracitado, Reichenbach completaria e lançaria, em vida, mais quatro longas (“Dois Córregos” em 1999; “Garotas do ABC” em 2003; “Bens Confiscados” em 2004 e “Falsa Loura” em 2007) e alguns curta-metragens. “Falsa Loura” é o canto do cisne do cineasta, o último de seus filmes a chegar às telas antes de seu falecimento em 2012 e o expoente final de um período do trabalho de Carlão que encontrou resistência na crítica e no meio cinematográfico brasileiro da época. Posteriormente, o longa final passou a granjear interesse de espectadores interessados pelo conjunto da obra do autor, e hoje está alçado ao justo patamar de obra-prima.

Reichenbach foi um dos poucos diretores da sua geração a se adaptar plenamente aos novos tempos, os tempos da “retomada do cinema brasileiro”, nos quais as relações com a Embrafilme (ou a falta delas, como era o caso da maior parte dos colegas de Reichenbach e, em grande medida, até dele mesmo), produtora e distribuidora de capital misto fundada nos anos da ditadura militar sessentista, foram substituídas pelas leis de incentivo e editais. As novas medidas foram concebidas para reerguer o cinema brasileiro da terra arrasada deixada pelo governo Collor de Melo, que não obstante implodir a economia do país, dedicou à indústria cinematográfica um golpe especial, extinguindo a (já moribunda) Embrafilme e causando uma escassez de anos na produção e distribuição comercial de filmes brasileiros. Completar um longa nos anos de Collor, e até mesmo no início do período pós-Collor, era algo como uma vitória. Poucos diretores atingiam essa façanha, como Guilherme de Almeida Prado, que contra tudo e contra todos lançou seu “Perfume de Gardênia” em 1992. Ou Carlão, que entrega em 1993 o “Alma Corsária”, um de seus filmes mais sofisticados e que olha para o passado com um distanciamento crítico, porém nostálgico. Os anos dourados, a juventude, a formação intelectual de uma geração, a repressão da ditadura, tudo isso já passou. O futuro é incerto: a única coisa certa é que a morte está à espreita. Resta relembrar o que já foi e aproveitar o agora com igual ternura. Reichenbach soube “aproveitar o agora” dos anos 2000: associou-se à produtora Sara Silveira e com ela fundou a Dezenove Som e Imagens, companhia responsável pela produção de seus últimos filmes e que conseguiu viabilizá-los jogando limpo pelas novas regras da “retomada do cinema brasileiro”, adentrando os primeiros anos de vida da Agência Nacional do Cinema, órgão que serve de guarda-chuva para a indústria cinematográfica brasileira atual.

Todo esse cenário — ANCINE, burocracia, ciclos de festivais nos quais diretores que antes eram seus pares já estavam alçados ao posto de medalhões, enquanto filmes como “Falsa Loura” eram recebidos com frieza — contrasta de forma quase completa com o momento no qual a geração de Carlos Reichenbach começou a filmar — a geração dos enfant terribles quasi-beatniks que largaram as escolas de cinema de São Paulo para aprender na prática, adentrando o sistema de produção da Boca do Lixo paulistana e fazendo dela o seu playground; a geração que tinha como professor e mentor Luis Sergio Person, e que tinha como Deus o autor/ator por trás de Zé do Caixão, José Mojica Marins; a geração que revolucionou o cinema brasileiro e se digladiou com o Cinema Novo ao lançar auto-intitulados “filmecos picaretas” que se opunham ao projeto ideológico fracassado cinemanovista e à sua abordagem distante e asséptica em prol de uma explosão livre de ideias, discursos e linguagem onde a criatividade aflorava dos recursos parcos (como poucos diretores cinemanovistas de maior talento, entre os quais Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, souberam fazer quando o “núcleo duro” do Cinema Novo se dissipou); a geração que de certa forma cunhou a proto-pornochanchada ao unir o exploitation necessário para se fazer um filme com dinheiro da Boca do Lixo com o humor debochado e os ideais libertários daqueles jovens loucos e rebeldes, em filmes como “As Libertinas” (1969), de Carlos Reichenbach, João Callegaro e Antônio Lima, ou “A Mulher de Todos” (1969), de Rogério Sganzerla; a geração que deu ao cinema brasileiro — e ao mundo — filmes do quilate de “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), “O Pornógrafo” (1970) e “Lillian M.: Relatório Confidencial” (1975).

Tal mudança radical de esquema de produção, no entanto, parece ter sido enfrentada por Carlão com surpreendente naturalidade. Diretor experiente e de carreira extensa — de sua geração, foi um dos que mais tempo permaneceu filmando, com poucos e curtos intervalos — atravessou períodos históricos e métodos de filmagem diversos. “Lillian M.” não é o mesmo tipo de produção (no sentido de técnica, valores de produção e todo o resto) que “Filme Demência” (1986), que nesse sentido também difere de “Alma Corsária”. Agora, seus longas de fato finais — os rodados nos anos 2000 — parecem existir em uma lógica à parte. Falemos sobre eles em maior nível de detalhe.

“Garotas do ABC” e “Falsa Loura” são filmes-irmãos e produtos finais de um longo projeto que Reichenbach empreendia havia anos, sob rubricas gerais como “Sonhos de Vida, Vida de Sonhos” ou “ABC Clube Democrático”. A ideia original concebia quatro roteiros interligados e ambientados no mesmo círculo social, centrado em um grupo de operárias da região industrial do ABC Paulista, com cada filme enfocando uma personagem em particular. Contemplado com a Bolsa Vitae de Artes em 1996, Carlão deu início a uma pesquisa substancial pela região, que ia da leitura voraz de jornais e periódicos ao ato de tomar os ônibus que circulavam pelas cidades fabris para ouvir o jeito como as proletárias falavam e melhor entender seus sonhos, ambições, dificuldades e pontos de vista. Os quatro roteiros chegaram a ser completados, e foram lançados em conjunto no livro “ABC Clube Democrático — 4 roteiros de Carlos Reichenbach”, em 2008. Dos componentes dessa tetralogia — “Aurélia Schwarzenêga”, “Anjo Frágil Antuérpia”, “Lucineide Falsa Loura” e “A Fiel Operária Suzy Di” — apenas dois chegaram às telas, e submetidos a uma série de alterações estruturais e concessões. “Aurélia” foi adaptado no que se tornou “Garotas do ABC”, “Lucineide” foi rebatizada e tornou-se Silmara em “Falsa Loura”, que, uma vez visto como inviável o plano dos quatro longas interligados, foi reescrito para que os vínculos com os outros projetos do “Clube Democrático” se dissolvessem.

Ambos os filmes refletem preocupações que Reichenbach demonstrava ter desde cedo em sua filmografia, ainda que possa ser argumentado que estas foram desenvolvidas em maior grau já nesses trabalhos. O protagonismo feminino através de jornadas tortuosas em sua obra já existia, pelo menos, desde “Lillian M.”; o interesse pelo universo particular das mulheres trabalhadoras pode ser visto como uma continuação de seu olhar sobre o mundo das professoras suburbanas de “Anjos do Arrabalde” (1987); a maneira com a qual desenvolve os personagens e seus conflitos com enfoque no emocional, nos dissabores amorosos e em eventos que alteram profundamente as perspectivas de suas protagonistas evoca o melodrama já presente em filmes como “Dois Córregos”. “Bens Confiscados”, lançado em 2004, também diz respeito a esse interesse pelo melodrama. É possível argumentar que, por “separar” os dois filmes-irmãos, sendo lançado entre um e outro, possui alguns dos mesmos dilemas — ou talvez, justamente por não ter a mesma origem embrionária dos demais, se envereda ainda mais pelo caminho emocional ao não ser delineado de maneira tão clara no social — mesmo que, como de praxe em toda a filmografia de Reichenbach, intelectual refinado e cineasta indomável, o social esteja indissociavelmente presente até mesmo no mais despretencioso dos “filmecos picaretas”. “Dois Córregos”, por vezes tido como uma obra menor quando comparado ao anterior “Alma Corsária” (como “Bens Confiscados” em relação aos outros filmes dos anos 2000), é tonalmente pessoal, intimista, sensorial, mas lida com questões políticas e feridas da ditadura tanto quanto seu antecessor (e mesmo filmes anteriores, como “Extremos do Prazer”, realizado ainda durante o regime militar, em 1983).

O falecido Carlão, querido como foi por todos que com ele conviveram, tem sua memória cercada por um dos mais ricos anedotários do cinema brasileiro. Consta, por exemplo, que fazia leitura regular dos artigos de Olavo de Carvalho — à época, colunista com espaço garantido em veículos da imprensa tradicional — como preparação da pesquisa para o “Garotas do ABC”, no qual um dos núcleos narrativos gira em torno de um grupo de neonazistas comandados por um pseudo-intelectual kitsch (que ouve Richard Wagner no rádio do carro, ladeado por uma esquadrilha de motoqueiros que mimetiza a cavalgada das valquírias). “Garotas” antecipa o tipo de figura que viria a ganhar os espaços públicos no Brasil apenas quinze anos depois, com a ascensão ao poder público de discípulos de Olavo, expoentes do que alguns já bem definiram como “olavismo engravatado” e que poucos, no cinema brasileiro, conseguiram antever (além de Reichenbach, vale citar Ugo Giorgetti, autor do sintomático “O Príncipe”, de 2002, filme rico o suficiente para que as discussões nele presentes não caibam em um parágrafo de um texto sobre outro diretor). Apenas isso já seria o suficiente para deixar claro o quanto o cineasta deu de si nesse projeto múltiplo que foi obrigado a condensar.

“Aurélia”, a princípio, seria focado integralmente em uma jovem trabalhadora negra, fã do ídolo austríaco Arnold Schwarzenegger, que divide seu tempo entre o trabalho, as questões familiares e o lazer enquanto seu namorado, que gradualmente se aproxima mais e mais do grupo neonazista, começa a gerar conflitos em sua vida. O “Garotas do ABC” que chegou a ser rodado é isso, mas também é muito mais: nele Carlão resumiu os temas gerais do “Clube Democrático” (à época, não sabia que conseguiria, anos depois, rodar o “Falsa Loura), deu um espaço para cada um dos arquétipos que lhe eram caros nos roteiros originais, desenvolveu as colegas de trabalho de Aurélia, pôs em tela as temáticas sociopolíticas que circundam o ABC (como se sabe, não são poucas), explorou (de forma até bem demarcada, com cartelas) a divisão que desde o início parecia nortear sua concepção para o projeto: trabalho e lazer, sonhos de vida e vida de sonhos, a forma como as operárias convivem e transitam entre a fábrica e a boate. “Falsa Loura”, reformulado, acabou seguindo mais a trajetória individual da personagem Silmara, e é um dos filmes onde a aptidão de Carlão para com o melodrama mostra-se mais afiada, seu domínio da linguagem mais excepcional, sua construção narrativa mais sólida.

De “Alma Corsária” a “Dois Córregos”, de “Garotas do ABC” a “Falsa Loura”, passando por “Bens Confiscados”, o período crepuscular do trabalho de Carlos Reichenbach tem altos e baixos, mas enquanto unidade sintetizam o trabalho de um cineasta veterano e seguro de si. Somados ao conjunto da obra restante, formam uma filmografia rica como poucas, em quantidade e qualidade, no rol dos grandes nomes da cinematografia brasileira.

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Igor Nolasco

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