Lançamentos favoritos de 2021

Igor Nolasco
12 min readDec 30, 2021

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Em clima de fim de ano, inventario aqui dez filmes lançados (nacional e/ou internacionalmente) ao longo de 2021 que chamaram minha atenção, me instigaram e estiveram entre as melhores experiências que tive no que é relativo a cinema durante os últimos doze meses, somados a uma menção honrosa que ficou de fora do “top 10”. Designo breves comentários para cada filme da lista.

Menção honrosa: “Memória” (Memoria, Colômbia, dir. Apichatpong Weerasethakul)

Sendo este uma menção honrosa, não irei me alongar muito. Mas conforme já comentei em outras ocasiões, como em “Sem Essa, Aranha”, cada sequência de “Memória” é um universo particular (ainda que evidentemente elas se liguem por meio de uma unidade muito bem amarrada). Sendo um filme onde o som faz toda a diferença e é um ponto dramático/sensorial vital, tive a felicidade imensa de poder assistir em cinema no Festival do Rio desse ano. E foi uma sessão linda.

10. Subterrânea (Idem, Brasil, dr. Pedro Urano)

Dos dez títulos que selecionei para essa lista, o interessantíssimo (perdoem-me o superlativo, empregado com a mais sincera das intenções) “Subterrânea”, de Pedro Urano, é o único que já foi objeto de uma crítica de cinema que escrevi previamente (ainda em janeiro, quando pude assisti-lo durante a edição on-line da Mostra Tiradentes). Portanto, reproduzo aqui trechos do texto que redigi para o Plano Aberto, que pode ser acessado e lido integralmente aqui.

[Em “Subterrânea”], “o experimentalismo dita o tom da narrativa (da qual o longa não abre mão, indo na contramão do que fazem muitos filmes experimentais do atual cinema brasileiro), da linguagem, dos elementos concatenados ao longo da hora e vinte de minutagem e mesmo dos referenciais utilizados para construir o alicerce intelectual do filme ­­– que é levantado com inspiração assumida em Hélio Oiticica, Rogério Sganzerla, Júlio Verne e principalmente Lima Barreto.” […]

“Seus personagens […] flanam pelo Rio [de Janeiro], e o cineasta se utiliza desse pretexto para retratar a cidade sob sua ótica de ficcionista. A conspiração construída sobre diversos acontecimentos na história da cidade acaba servindo como um pretexto para que uma série de ambientes do microcosmo carioca seja objeto da câmera de Urano.” […] “Não se trata, no entanto, de um filme-fetiche que só funciona para cariocas ou espectadores necessariamente familiarizados com o Rio de Janeiro. […] O Rio de ‘Subterrânea’, na verdade, causa uma sensação de desconforto, incômodo. Captado por cores dessaturadas, com ruas sempre vazias e construído sobre as ruínas de incontáveis reformas urbanas, ele está, em verdade, mais próximo do proverbial ‘vale da estranheza’ — que é construído de maneira bem sucedida através dos esforços do realizador, fazendo-o sem alterar praticamente nada na estrutura de cada ambiente.”

9. Tempo (“Old”, EUA, dir. M. Night Shyamalan)

Shyamalan é daqueles cineastas que já dividiu o público que conhece-o e a seu trabalho em dois grupos bem distintos: os que gostam e acompanham seus filmes, e os que desgostam e, mesmo assim, acompanham. “Tempo”, como de costume, foi divisivo. Entre seus detratores, nas redes sociais, cheguei a ver muitos se referindo a Shyamalan como um diretor canhestro, “amador”, e acusando os planos e a direção de atores como dignos de “filme B” (1. como se “filme B” fosse demérito; 2. quem não entendeu até agora o que o autor indiano-americano vem fazendo pelo menos desde “Fim dos Tempos”, não vai entender nunca).

Para mim, nada mais distante da verdade, e no entanto que bom que haja pelo menos um cineasta em atividade na indústria norte-americana (a que exporta seus produtos de maneira mais bem-sucedida através do mundo, e que portanto torna seus artistas os mais nominalmente conhecidos) que consegue emplacar projetos autorais no circuito comercial e fazer o público geral sair da zona de conforto. Não considero este “Tempo”, filme pandêmico de Shyamalan baseado no quadrinho “Castelo de Areia”, um dos grandes trabalhos do diretor; no entanto me parece mais um longa recheado de boas ideias e bons momentos em uma obra que cada vez mais vai se firmando como sólida e criativa, indo muito além do que alguns dizem ser sua maior paixão (e inevitavelmente por vezes dá as caras), a do “plot twist”.

8. Zeros e Uns (“Zeros and Ones”, Itália, dir. Abel Ferrara)

A atual fase da carreira de Abel Ferrara — cineasta experiente em filmes que abordam o universo do crime norte-americano, radicado há anos na Itália e que desde então vem rodando produções menores, mais independentes, de caráter experimental e sensorial — muito me interessa. Tive o privilégio de ver “Tommaso” em tela grande (sessão inesquecível do Festival do Rio 2019). Parece que o lançamento oficial brasileiro para esse novíssimo “Zeros e Uns” foi apenas por meio da locação digital. Compreensível, mas ainda assim, uma pena.

Ferrara substitui aqui seu vizinho e colaborador habitual Willem Dafoe por um extremamente adequado Ethan Hawke (que quanto mais envelhece, mais vem provando sua versatilidade e se distanciando de sua conhecida imagem de galã awkward — vide “First Reformed”, de Paul Schrader), que interpreta irmãos que mais funcionam como duplos em um filme que, mesmo abordando um iminente atentado ao Vaticano, mantém o estilo do Ferrara contemporâneo e está muito mais interessado na construção de um comentário, que se lê (e sente) através da imersão no universo particular que o cineasta constrói na Roma subterrânea (dos computadores de hackers, cheio de gambiarras, aos bordéis/bocas de fumo clandestinos habitados por strippers marxistas, em conceitos coexistentes dignos de Fausto Fawcett), do que na “ação” propriamente dita (ainda que esta possua seus catárticos momentos). Possui alguns dos planos mais marcantes no trabalho recente do diretor.

7. Benedetta (Idem, França, dir. Paul Verhoeven)

Vi muitos comparando (em maior parte das vezes, desfavoravelmente — como sendo este novo trabalho menor do que o outro) “Benedetta” a “Elle”, longa anterior de Paul Verhoeven. Os dois, de fato, possuem algumas similaridades em ficha técnica e em características gerais: são longas do diretor holandês realizados na França, produzidos por Saïd Ben Saïd e nos quais o direcionamento, por assim dizer, parece ser o de empregar a aptidão natural de Verhoeven ao exploitation em longas direcionados ao público de festivais europeu.

Apesar de “Elle” estrelar Isabelle Huppert, provavelmente a maior personificação do “filme de festival” atualmente existente, “Benedetta” me parece muito mais próximo do que é esperado para este tipo de produção: é um filme biográfico que, para os padrões verhoevenianos, é até bem comportado, com um pano de fundo histórico e que na verdade é até surpreendentemente cuidadoso na maneira como aborda sua personagem titular: uma freira condenada à fogueira por manter relações sexuais com outra integrante de seu convento e por supostamente realizar falsos milagres. Fãs de “Elle” e do noventista “Showgirls” talvez se decepcionem com um Verhoeven mais “sóbrio” nas econômicas sequências que retratam relações sexuais — decisão que particularmente me pareceu inteligente e, por sua convencionalidade, deu a volta e se tornou surpreendente. O que há de mais “verhoeveniano” (se é que é possível cunhar tal adjetivo) está nas sequências que recriam os delírios de Benedetta, sobretudo os que envolvem Jesus (aí sim, por vezes a veia exploitation do diretor de “RoboCop” se mostra mais forte).

6. The Scary of Sixty-First (Idem, EUA, dir. Dasha Nekrasova)

Aparentemente sem tradução oficial para seu título ou previsão para lançamento comercial no Brasil, o longa de estreia da atriz Dasha Nekrasova na cadeira da direção, apesar de rodado em película (o que hoje representa luxo para poucos), é, em escala, um filme pequeno e de atmosfera intimista. Em temática, no entanto, é ambicioso: se envereda pela paranoia do suspense e do terror urbanos ao desvelar tramas conspiracionistas que, entre produções recentes, encontram paralelo talvez no “O Mistério de Silver Lake” de David Robert Mitchell, mas que na produção de de Nekrasova fincam os pés de forma mais concreta na realidade e no histórico político norte-americano dos últimos anos, com influência assumida do que é discutido e especulado nos cantos mais improváveis da internet, aqui transposto para uma realidade que afeta, e muito, o núcleo enxuto de poucas personagens articulado pelo longa.

Alguns vêm comparando “The Scary of Sixty-First” a “De Olhos Bem Fechados”, aos filmes de apartamento de Roman Polanski (para mim, parece estar mais perto de “O Inquilino” do que de “Repulsa” ou “O Bebê de Rosemary”) ou aos giallos de Dario Argento. A meu ver, é um filme que se sustenta perfeitamente sem que esses paralelos precisem ser traçados (no caso de alguns, sequer acho que figurem entre as intenções de Nekrasova). No entanto, se é para se limitar a essas comparações, o longa me parece mais bem-sucedido em ser giallesco do que o filme que Edgar Wright lançou esse ano, que assumidamente almejava sê-lo.

5. O Jogador (“The Card Counter”, EUA, dir. Paul Schrader)

Mais relembrado entre o público atual por suas irreverentes publicações no Facebook, o roteirista e diretor Paul Schrader segue produzindo e por vezes ainda é capaz de bons resultados. “The Card Counter” para alguns pode parecer mais do mesmo no que é relativo a Schrader, e de certa forma é, mesmo: o caráter narrativo, emendado por locuções em off remetentes a um diário e calcadas em uma perspectiva austera, desiludida e que se inicia em uma rotina rígida que vai desaguando em eventos inesperados, imediatamente lembra o “Taxi Driver” de Schrader/Martin Scorsese (produtor do “Card Counter”), e na medida em que o filme vai se desenrolando, ele aos poucos revela ser o que, de certa forma, é: mais um exercício fruto da obsessão schraderiana em refilmar à sua maneira “O Batedor de Carteiras”, de Robert Bresson.

E mesmo realmente sendo “mais do mesmo” nesse sentido, há um frescor muito bem-vindo no novo Schrader: a trama (sendo um Schrader, é inevitavelmente um “filme de roteiro”), num nível superficial ambientada no mundo dos apostadores que migram de hotel em hotel, cassino em cassino, possui uma segunda camada que diz respeito aos crimes de guerra norte-americanos e que logo se sobrepõe à primeira. Oscar Isaac, no papel do lacônico protagonista, está em um de seus melhores papéis.

4. Matrix Ressurections (“The Matrix Ressurections”, EUA, dir. Lana Wachowski)

Não escrevi sobre o novo “Matrix” em detalhe no formato de crítica, como fiz com o supracitado “Subterrânea”. No entanto, fiz um breve comentário sobre o filme no Letterboxd, que pode ser lido na íntegra aqui, e que acredito que possa representar o que acho sobre o longa nessa lista através da seleção de alguns trechos:

“A melhor sátira possível para a cultura da ‘legacyequel’ (não lembro onde vi o neologismo, que achei genial) que emergiu na década passada e tomou o cinema blockbuster de assalto com produções que flutuam entre a comoção segura e o caça-níquel fajuto segurando o espectador através da nostalgia (palavra utilizada de maneira tão cuidadosa nesse “Matrix Ressurections”). […] Que bom que Lana Wachowski está mais interessada em brincar com o imaginário imagético que co-criou vinte anos atrás através da revisão de conceitos — tornando-os mais complexos e talvez um tanto cínicos — do que em tratar sua obra em um subproduto corporativo da cultura ‘pop’ (a ‘atualização’ do ambiente empresarial de ‘Ressurections’ quando comparado ao da trilogia anterior, abandonando a burocracia engravatada e trazendo a ambientação para o ‘workplace’ ‘descolado’ contaminado pela publicidade, não poderia ter sido mais certeira).” […]

“Senti uma triste influência do cinema de ação pós-Bourne na maior parte das lutas corpo-a-corpo disso aqui (talvez a Lilly fosse a irmã responsável pela plasticidade e fluidez dos combates na trilogia original?). Mas fiquei contente em encontrar criatividade, aptidão com os efeitos digitais e uma inteligência autoconsciente (que vai muito além da tradicional filosofia de boteco wachowskiana) que tornam isso aqui um legítimo Matrix.”

3. France (Idem, França, dir. Bruno Dumont)

Como também escrevi brevemente sobre “France” no Letterboxd (no original disponível aqui), reproduzo aqui meu comentário sobre ele. Como é menor do que o escrevi sobre o “Matrix”, encaixo-o na íntegra aqui na lista:

“Uma mulher sob holofotes. ‘Falsa Loura’, de Carlão Reichenbach + programa Em Pauta do GloboNews. Acaba sendo um filme do começo dessa década que reflete sobre a anterior; geopolítica europeia e mundial (e até mesmo ecos do MeToo) como pano de fundo para a tragédia pessoal — em alguns momentos, literalmente, quando as imagens captadas pelas reportagens ocupam, desfocadas, o fundo do programa televisivo apresentado pela personagem de Seydoux (sempre em primeiro plano), que mesmo quando segue o texto do teleprompter ou descreve situações extremas in loco, tem sempre nas expressões de seu rosto o peso dos conflitos pessoais. Discorrer sobre o comentário que faz sobre toda a questão da fama, riqueza e futilidade seria chover no molhado. Sequências incríveis espalhadas generosamente de ponta a ponta do filme. Estética do telejornalismo, com suas cores primárias fortes e planos frontais, emulada com sucesso e incorporada a dados momentos da linguagem do todo, mas não só; a forma como a personagem France e sua equipe técnica estilizam a mise en scene das reportagens in loco, pra além de render momentos cômicos proveitosos e quase absurdistas (sobretudo ao início), é por si só um comentário a parte sobre o jornalismo e mesmo sobre o cinema. O humor aparece de forma sazonal, mas sempre bem-vinda, em meio a um conjunto majoritariamente dolorido. Sem dúvidas, um dos grandes filmes do ano.”

2. O Caminho Para Redenção (“Cry Macho”, EUA, dir. Clint Eastwood)

Já nonagenário, o lendário Clint Eastwood continua sendo um cineasta intensamente prolífico — e com um padrão de qualidade, para mim, extremamente satisfatório. Sou particularmente interessado em seu trabalho recente, que a rigor revisa através de um olhar sóbrio e desiludido o heroísmo e os simbolismos norte-americanos (de “Jersey Boys” a “Sully” a “15:17 Trem Para Paris” a “O Caso Richard Jewell”, etc), e com “Cry Macho” não foi diferente — dessa vez, no entanto, o símbolo a ser “desconstruído” é o do próprio Eastwood, dando continuidade ao que já havia sido esboçado no anterior “A Mula”, também dirigido e protagonizado por ele, e que explora visualmente sua figura envelhecida de maneira inteligente.

Dessa vez, o cineasta leva essa ideia até as últimas consequências: reconstrói sua clássica silhueta de vaqueiro (com chapéu, como manda o figurino) em um peão de rodeio aposentado que aceita um último trabalho na fronteira do México e se vê frente a frente com suas fragilidades, seu passado, seu presente, o futuro que lhe resta, a vida familiar idílica que nunca conseguiu ter. Se “Cry Macho” fosse o último filme de Eastwood, seria um canto do cisne perfeito — mas que ele continue a filmar enquanto lhe for possível e interessante. Enquanto o fizer, haverá gente disposta a assistir.

1. Drive My Car (“Doraibu mai kâ”, Japão, dir. Ryusuke Hamaguchi)

Bom, isso não é nenhuma surpresa. Dentre uma parcela considerável de amigos e conhecidos mais ligados em cinema, o “Drive My Car” (parece que a tradução oficial do título no Brasil ficou anglófona mesmo) de Ryusuke Hamaguchi mostrou-se uma verdadeira unanimidade — quase todo mundo gostou; quem não gostou, amou. Imagino encontrar-me no segundo grupo, uma vez que cada vez mais o filme parece ter ocupado seu lugar entre meus favoritos pessoais (talvez seja cedo demais para dizer, mas é um longa que nos estimula a deixar a emoção assumir o controle). Eu não era um fã prévio de Hamaguchi ou de Haruki Murakami (o escritor best-seller responsável pelo conto que serve como texto-fonte para o filme), mas meu interesse pelo longa foi tamanho que já me planejo aprofundar-me minimamente em ambos quando possível.

Com suas três horas de duração, foi um dos filmes mais fluidos que assisti em 2021 — o tão falado prólogo de quarenta minutos, para mim, passou como se tivesse dez; as duas horas e cinquenta restantes, como um único e profundo respiro. Com tanto o que já foi comentado no boca-a-boca sobre “Drive My Car”, parece ocioso citar elementos que não obstante sou obrigado a tocar aqui, pois fazem parte do que mais me encantou no conjunto: o intertexto entre trechos (cuidadosamente selecionados) de “Tio Vania”, peça do dramaturgo romeno Eugène Ionesco ensaiada e encenada pelos personagens, com os dramas pessoais que se desenrolam ao longo da minutagem, é objeto de uma leitura ainda melhor e mais profunda na revisão (assisti duas vezes), ainda que já sejam um elemento fundamental na primeira assistida. Cada subnúcleo, cada sequência, cada personagem tem o seu momento, e é um filme onde alguns dos momentos mais poderosos estão no que é dito, em detrimento do que é mostrado. Como no “Tubarão” de Spielberg, cuja melhor sequência é a do pescador bêbado narrando um naufrágio ocorrido anos antes, “Drive My Car” é um antídoto poderoso contra as frases feitas dos porta-estandartes da máxima mckeeiana “show, don’t tell”.

Tive a felicidade de poder ver na tela grande, durante o Festival do Rio de 2021.

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Igor Nolasco

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