“Neville Lado B”: textos sobre filmes raros ou inéditos de Neville D’Almeida

Igor Nolasco
17 min readSep 30, 2021

Em uma iniciativa promovida pelo REcine — Festival Internacional de Cinema de Arquivo, parte do programa de sua edição de 2021 (cujo tema é “A memória do cinema brasileiro”) é uma homenagem ao cineasta e artista visual Neville D’Almeida.

A partir de hoje (quinta-feira, 30 de setembro), estarão disponíveis através da plataforma Vimeo os filmes que integram a mostra on-line “Neville Lado B”, focada em trazer ao público a chance de assistir a obras raras ou inéditas do diretor. A curadoria é assinada por Cavi Borges e Igor Nolasco.

Abaixo, seguem breves textos sobre os filmes e videoartes que compõem a programação da mostra, aqui disponibilizados visando promover reflexão e discussão sobre as obras e sobre a filmografia de D’Almeida como um todo. Os filmes já disponíveis na plataforma Vimeo contarão com um link de acesso nessa postagem, que será atualizada na medida em que os demais títulos foram disponibilizados.

Todos os textos são de autoria de Igor Nolasco.

“O Bem Aventurado” (1966)

14'
Direção: Neville D’Almeida
Disponível em:
vimeo.com/601289384

Realizado em 1966 para o festival de filmes curta-metragem 16 mm JB-Mesbla, “O Bem Aventurado” é a primeira incursão de Neville D’Almeida no cinema à qual se tem acesso — uma obra pouquíssimo conhecida, menos ainda do que seu primeiro longa, “Jardim de Guerra”, que viria dois anos depois. Já estão ali elementos que seriam desenvolvidos de maneira mais afiada no trabalho subsequente: o personagem à deriva, o sentimento de subversão à ditadura militar, a exploração iconográfica da cultura pop e o uso desta enquanto elemento de linguagem.

D’Almeida, que estava vivendo em Nova York desde 1964, rodou o curta durante uma breve passagem por sua Belo Horizonte natal. Com “O Bem Aventurado”, firmou seu lugar enquanto um talento que emergia em meio a uma cena cultural efervescente de cinéfilos e intelectuais que se formavam na capital mineira, através de cineclubes e escolas de teatro. Ainda que visto, por filmes como “A Dama do Lotação” (1978) e “Rio Babilônia” (1982), como um diretor com particular interesse pela cidade do Rio de Janeiro, Neville D’Almeida não nega suas origens e dá seu primeiro passo fílmico na cidade onde nasceu e cresceu — é, orgulhosamente, um cineasta mineiro.

Considerado perdido por décadas, felizmente agora “O Bem Aventurado” pode ser visto e analisado de maneira própria no contexto maior da obra de D’Almeida.

“Jardim de Guerra” (1968)

91'
Direção: Neville D’Almeida
Disponível em:
vimeo.com/552939541

“Jardim de Guerra” era um filme praticamente inédito quando foi selecionado para o Festival de Brasília de 1968 — antes, só havia sido objeto de projeções particulares e integrado a seleção do primeiro e único Festival de Cinema de Belo Horizonte, naquele mesmo ano. Logo antes do que seria sua segunda exibição comercial em Brasília, o primeiro longa do jovem diretor mineiro Neville D’Almeida foi interditado pela Polícia Federal da ditadura militar e proibido de ser exibido em território nacional.

Submetida às afiadas giletes da Censura, a obra (co-roteirizada em parceria de D’Almeida com o escritor e músico Jorge Mautner) sofreu uma série de impiedosos cortes, feitos na tentativa de estripá-la do que ela tinha de mais incendiário: sua verve discursiva e estética, que colocava em xeque a situação política do Brasil e do mundo, citava nominal e visualmente figuras como Mao Tse-Tung e Ernesto “Che” Guevara, reivindicava os direitos dos negros e das mulheres, abordava o uso recreativo das drogas e o espírito do “desbunde” nas esquerdas, e sobretudo denunciava a tortura flagrantemente praticada contra os que subvertiam às normas. No filme, o protagonista, Edson, é sequestrado por agentes não identificados — de maneira evidentemente cifrada para abordar uma prática comum do governo militar — e repetitivamente interrogado e torturado, por seu envolvimento no que era visto como uma negociação terrorista.

Durante quase cinquenta anos, esse trabalho discursivamente explosivo — e arrojado também em suas imagens, com usos inovadores de projeção de slides e reprodução de posters enquanto parte da linguagem do filme — só podia ser assistido através de uma cópia encurtada e, em tudo, empobrecida, considerada ininteligível por críticos como Jairo Ferreira. A versão censurada foi exibida em poucas oportunidades na década de 1970 e, posteriormente, na televisão. Hoje, “Jardim de Guerra” só pode ser assistido integralmente, sem os cortes impostos pela ditadura, pois uma cópia 35 mm foi enviada clandestinamente para inaugurar a primeira Quinzena dos Realizadores da história do Festival de Cannes, em 1969, recebendo elogios de cineastas como Jacques Demy e Agnes Varda. Tendo voltado ao Brasil ao fim dos anos 2010, ela foi digitalizada e segue sendo devidamente preservada — e agora, todos podem testemunha-la.

Série “New York, anos 1970” (1973)

15'
Direção: Hélio Oiticica e Neville D’Almeida
Disponível em:
vimeo.com/601288193

“New York, anos 1970” foi o nome dado por Neville D’Almeida a uma série de cinco filmetes (cada um com pouco mais de três minutos de duração) rodados por ele e pelo artista visual Hélio Oiticica durante o ano de 1973.

Em tomadas internas que captam a atmosfera do loft de Oiticica em Manhattan, no coração pulsante de Nova York — cidade na qual viveu durante quase toda a década de 1970, após ganhar uma bolsa de estudos da Fundação Guggenheim — os filmetes não possuem som, e mostram imagens diversas, como a exibição de um filme na televisão ou Oiticica deitado no que aparenta ser uma rede. Destacam-se, no entanto, os momentos em que um pigmento branco é espalhado sobre superfícies como a capa do disco “Weasels Ripped My Flesch”, de Frank Zappa & The Mothers of Invention, como que contornando as ilustrações ali presentes — os artistas batizariam esse processo de “mancoquilagem”.

“New York, anos 1970” é um documento precioso da interação criativa entre D’Almeida e Oiticica, que teria como fruto mais conhecido as Bloco-Experiências in Cosmococa — Programa in Progress, série de ambientes concebidos com música e projeções de slides que anteviram a popularização das instalações no cenário da arte contemporânea. Os registros são, sobretudo, um diálogo entre duas mentes que, naquele momento, funcionavam numa produtiva sintonia: D’Almeida filma Oiticica e Oiticica filma D’Almeida; os dois se alternam em cada filmete, imortalizam visualmente sua parceria e são generosos o suficiente para compartilhá-la conosco.

“Hoje é dia de Rock” (1999)

54'
Direção: Neville D’Almeida
Disponível em:
vimeo.com/601287964

Quando rodou “Hoje é dia de Rock”, Neville D’Almeida já havia dirigido frutíferas adaptações de textos teatrais, tendo trasposto às telas Nelson Rodrigues em “Os Sete Gatinhos” (1980) e Plínio Marcos em “Navalha na Carne” (1997) — para além de ter estudado teatro com interesse em sua Belo Horizonte natal. Posteriormente, ainda dirigiria sua atenção a Mário Bortolotto, com “A Frente Fria que a Chuva Traz” (2016). No entanto, talvez seja em “Hoje é dia de Rock” que o cineasta trabalha de maneira mais estreita com uma aproximação entre a linguagem teatral e cinematográfica. Uma das obras menos exibidas e assistidas de sua filmografia, nem por isso deve ser considerado um filme menor em meio à mesma.

Partindo do texto original de José Vicente, que marcou época nos primeiros anos da década de 1970, a adaptação filmada por D’Almeida tem como base a montagem teatral do espetáculo dirigida por Marcos Vinicius Faustini, e acompanha a história dos filhos de Pedro Fogueteiro, um homem simples oriundo de uma pequena cidade de Minas Gerais.

Não apenas um filme, a versão de Neville D’Almeida para “Hoje é dia de Rock” é também um registro histórico: nela, o célebre ator Nildo Parente — que já havia sido dirigido pelo cineasta em “Rio Babilônia” (1982) — pode ser visto em um de seus últimos papéis cinematográficos.

“Acquawater” (2005)

4'
Direção: Neville D’Almeida

“Acquawater” é uma breve videoarte dirigida por Neville D’Almeida tendo como base a Cosmococa CC4, um dos ambientes planejados na década de 1970 pelo cineasta em parceria com o artista visual Hélio Oiticica no projeto Bloco-Experiências in Cosmococa — Programa in Progress, precursor da onda de instalações que deslancharia posteriormente no mundo da arte contemporânea.

O elemento central do ambiente da CC4 — e o motivo pelo qual ela é uma das mais reconhecíveis e adoradas Cosmococas — é uma piscina, aberta para que o visitante possa nadar e interagir com a água, com as projeções de slide e com os demais elementos presentes. Essa relação artística com a água se repetiria em outros trabalhos de D’Almeida, com destaque para “A Água, a Mulher e o Regador”, rodado no mesmo ano que “Acquawater”.

Sem cair no subterfúgio de meramente registrar o ambiente da CC4, o cineasta constrói os planos à sua maneira, focando no potencial imersivo da instalação e na união de imagens abstratas extremamente particulares para a construção de uma nova videoarte, ao som de uma trilha que vai de Beethoven aos ritmos afro-brasileiros.

“A Água, a Mulher e o Regador” (2005)

6'
Direção: Neville D’Almeida
Disponível em:
vimeo.com/601287911

Videoarte que dialoga com a Cosmococa CC4 concebida por Hélio Oiticica e Neville D’Almeida e, portanto, com “Acquawater” (2005), vídeo rodado por D’Almeida dentro do ambiente da CC4, “A Água, a Mulher e o Regador”, em sua curta duração, dedica-se quase que integralmente ao fascínio do cineasta pelas imagens aquáticas.

Aqui, contudo, à água é integrada outra imagem presente em uma parcela considerável da filmografia de D’Almeida: a mulher e, sobretudo, o corpo feminino. Sua câmera parece ter particular interesse em enfocá-lo através de planos fechados, capturando sem pressa detalhes diversos de sua extensão.

Obra pouco exibida, “A Água, Mulher e o Regador” sustenta-se enquanto uma possibilidade interessante para os espectadores interessados em conferir como o cineasta consegue lidar de maneira estritamente sintética e visual com conceitos que possuem reverberações diversas em seu trabalho no cinema e nas artes visuais.

“Tempo Glauber” (2005)

24'
Direção: Neville D’Almeida e Tamur Aimara

Dirigido por Neville D’Almeida em parceria com o cineasta e fotógrafo Tamur Aimara, “Tempo Glauber” é um curta documentário que tem como objeto a fundação de mesmo nome, idealizada para preservar e celebrar o legado de Glauber Rocha, provavelmente o diretor de cinema brasileiro mais prestigiado da história.

Contando com um prólogo recitado por Emmanuel Cavalcanti — um dos atores que encapsulam de forma mais bem-sucedida a energia glauberiana — “Tempo Glauber” conta com entrevistas com Lúcia, mãe de Glauber e nome de máxima importância na organização documental de sua memória, e figuras como os cineastas Orlando Senna e Paloma Rocha.

Na mesma medida em que os propósitos e planos futuros da fundação são explicitados, uma abundância de imagens de arquivo — fotografias, desenhos e documentos relativos ao cineasta — são utilizadas proporcionalmente, de maneira a ilustrar parte do rico acervo mantido entre aquelas paredes. Trechos icônicos dos filmes de Glauber, como “Terra em Transe” (1967) e “Claro” (1975), também compõem esse mosaico.

“Luz-Lux-Lúcia” (2005)

23'
Direção: Neville D’Almeida e Tamur Aimara
Disponível em:
vimeo.com/601289488

O segundo curta co-dirigido por Neville D’Almeida e Tamur Aimara que reflete sobre o legado de Glauber Rocha (ambos produzidos de forma mais ou menos simultânea), “Luz-Lux-Lúcia” se diferencia de “Tempo Glauber”, naturalmente, por seu objeto: aqui, o foco reside na mãe do cineasta, Lúcia Rocha — que, logo nos primeiros minutos, é apresentada ao espectador de maneira afetuosa e celebratória (o que dá o tom, de imediato, ao curta como um todo).

Entrevistada com mais espaço aqui do que em “Tempo Glauber”, Lúcia relembra histórias que vão dos bastidores de “Barravento” (1962) — primeiro longa glauberiano e o favorito ao gosto materno — à prisão e ao exílio de seu filho, durante o período mais intenso da ditadura militar sessentista.

Utilizando livremente cenas de filmes como “A Idade da Terra” (1980) para ilustrar ou complementar as falas da entrevistada, para além de fotografias e recortes de jornais, “Luz-Lux-Lúcia” reconstrói parte da trajetória única de Glauber Rocha através do olhar insubstituível de uma das pessoas que melhor o conhecia — sendo, simultaneamente, uma carta de amor e admiração a Lúcia Rocha.

Série “A voz do provocador” (2006)

14'
Direção: Neville D’Almeida
Disponível em:
vimeo.com/601350546, vimeo.com/601289433 e vimeo.com/601349992

“A voz do provocador” foi o nome dado por Neville D’Almeida a uma série de três curtas filmados em Mini DV que tem, em comum, a presença do ator e diretor de teatro Antônio Abujamra, e cujo título remete ao “Provocações”, inteligente programa de entrevistas que Abujamra apresentou na TV Cultura do início dos anos 2000 até seu falecimento, em 2013.

Com durações que variam entre três e seis minutos, os episódios seguem um mesmo formato: com câmera na mão, D’Almeida enquadra Abujamra enquanto ele expressa pensamentos afiados acerca de problemas sociais, históricos e ambientais enfrentados pelo Brasil. O subtítulo de cada episódio resume as questões abordadas: “O ouro roubado”, “Internacionalização da Amazônia” e “Os artísticos”.

Exibidos em raríssimas oportunidades, esses três vídeos dialogam não apenas entre si, mas também com preocupações gerais que permeiam toda a obra de D’Almeida enquanto cineasta.

Série “O Diário Secreto de Jane Joy” (2007)

3'
Direção: Neville D’Almeida
Disponível em:
vimeo.com/601364823 e vimeo.com/601357080

Uma parceria com o Daspu, coletivo de trabalhadoras sexuais que dialoga com o mundo da moda e das artes visuais, a série “O Diário Secreto de Jane Joy” é composta por dois filmes gravados em Mini DV, cujo formato é descrito como sendo o do “micrometragem”, tendo os episódios (“Receita de sedução” e “Calcinha”) pouco mais de um minuto cada.

Rodados em um estilo dinâmico, com câmera na mão — remetendo a outra série de curtas concebida por D’Almeida pouco antes, “A voz do provocador”, porém ainda mais focados na síntese fílmica e discursiva — os dois segmentos do “Diário Secreto” enfocam a mesma personagem, enquanto esta discorre brevemente sobre seu cotidiano de trabalhadora sexual.

Mantendo a abordagem despudorada para questões de sexo e sexualidade que são marca imediatamente reconhecível do cinema de D’Almeida, essa pequena série consegue compactá-las num formato micrométrico cuja autoria o cineasta já reivindicava em sua passagem pelo programa “Provocações”, de Antônio Abujamra, em 2013. São uma demonstração das possibilidades que o diretor consegue explorar, mesmo que em minutagens enxutas.

“Maksuara — Crepúsculo dos Deuses” (2007)

87'
Direção: Neville D’Almeida e Tamur Aimara
Disponível em:
vimeo.com/601342457

Uma faceta forte, porém pouco conhecida do trabalho de Neville D’Almeida, enquanto cineasta e artista visual, é a de seu interesse pelas questões relativas à natureza e aos povos indígenas. Pouco conhecida, talvez, pois o lado que a maior parte do público conhece de sua obra é a dos longa-metragens que lograram bem-sucedido lançamento comercial, como “A Dama do Lotação” (1978) ou “Os Sete Gatinhos” (1980). “Maksuara — Crepúsculo dos Deuses”, co-dirigido e fotografado por Tamur Aimara, sem dúvida figura entre o rol de seus longas menos projetados, assistidos e discutidos.

Ao acompanhar o cotidiano dos Kayapós em suas aldeias e eleger um deles — o titular Maksuara — para ir ao Rio de Janeiro e interagir com a cidade à sua maneira, D’Almeida, como sempre, não opta por saídas fáceis nos aspectos de linguagem: mistura documentário, intervenção e performance, e entrega uma de suas obras mais sensíveis.

Tendo seu ciclo de exibições extremamente fragmentado e restrito desde sua finalização em 2007, o longa emerge enquanto uma obra quase inédita, e retém seu frescor, experimentalismo e pertinência — afinal, coloca em evidência as temáticas do perigo da destruição do meio-ambiente e do flagrantemente criminoso genocídio indígena, ambos constantes no Brasil desde 1500.

“Boa noite, Cinderela” (2010)

18'
Direção: Neville D’Almeida
Disponível em:
vimeo.com/601333001

“Boa noite, Cinderela”, de 2010, sacramenta uma colaboração de peso entre Neville D’Almeida e o hoje saudoso ator e produtor musical Otávio III, ícone geracional que trabalhou com nomes de máxima importância do cenário cultural brasileiro.

Temática e narrativamente, se relaciona com diversos outros trabalhos da extensa obra nevilleana: uma jovem mulher se encontra com um homem mais velho, e ambos se entregam a um jogo de sedução que deságua em consequências inesperadas.

Calcado no espírito anárquico e indomável característico do cinema e da câmera de D’Almeida — que, a partir de determinado momento desse curta, demonstra sua costumeira rebeldia — “Boa Noite, Cinderela” trabalha a submissão do homem aos desejos e vontades da mulher, conforme visto anteriormente em “A Dama do Lotação” (1978), aqui em duração mais compacta e em contexto diferente e atualizado ao século XXI.

“Planeta Gigóia” (2012)

74'
Direção: Neville D’Almeida

Originalmente concebido para exibição em sala de cinema virtual promovida pelo jornal O Globo, “Planeta Gigóia” é um filme-ensaio poético dedicado a explorar visualmente a ilha da Gigóia. Localizada em um pequeno arquipélago na lagoa da Barra da Tijuca, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, a bucólica ilha serviu como residência fixa para Neville D’Almeida durante boa parte dos últimos vinte anos.

Seria natural — alguns diriam, mesmo, incontornável — que, eventualmente, o olhar de D’Almeida se voltasse para o local onde vive: filmou Belo Horizonte em 1966 e a zona sul-central do Rio de Janeiro em diversas oportunidades entre os anos 1960 e 2010, para além de Londres (em “The Night Cats”, filme perdido) e Nova York nos anos 1970. Indo além dessa natureza do diretor em aplicar sua ótica ao ambiente que o cerca, a ilha da Gigóia tem algo próprio de irresistivelmente cinematográfico: há em seu povo um clima de camaradagem comunitário; sua fauna e flora são belos e exóticos. A preocupação ecológica que caracteriza uma certa faceta do trabalho do diretor se faz, nessa produção, solidamente presente.

Completamente embalado por música clássica, pela qual D’Almeida é apaixonado (aqui, Tchaikovsky se encarrega de preencher a trilha sonora), “Planeta Gigóia” remete ao subgênero cinematográfico das “sinfonias urbanas”, ao qual pertencem obras como “Berlim, Sinfonia de uma Grande Cidade” (Walter Ruttmann, 1927), “Homem com uma Câmera” (Dziga Vertov, 1929) e “São Paulo, a Sinfonia da Metrópole” (Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig, 1929). Enquanto suas paisagens e idiossincrasias são descortinadas ao som de trechos de “O Quebra Nozes”, a ilha da Gigóia vai, por meio da lente de D’Almeida, sendo registrada em uma sinfonia não propriamente urbana, mas talvez árcade. Lembra, sobretudo, o melhor Humberto Mauro — o grande cineasta mineiro, com o qual o cinema de D’Almeida possui mais conexões do que possa aparentar num primeiro momento.

“Redenção” (2017)

15'
Direção: Neville D’Almeida, Joaquim Haickel
Disponível em:
vimeo.com/601338486

Um dos trabalhos mais recentes de D’Almeida, “Redenção” foi produzido um ano após “A Frente Fria Que a Chuva Traz” (2016), mas não traz um cineasta focado nas mesmas temáticas e na mesma linguagem — prova da versatilidade do diretor, que roteiriza, atua e co-dirige esse curta-metragem em parceria com Joaquim Haickel.

Apesar de não ser um herdeiro direto da narrativa de “A Frente Fria”, há em “Redenção” um espírito que dialoga com aspectos presentes em toda a obra de D’Almeida, sobretudo na maneira como trabalha a personagem feminina, que aqui ocupa uma posição de protagonismo. Já em “Jardim de Guerra” (1968) as discussões sobre o movimento feminista encontravam algum lugar nas preocupações sociopolíticas do cineasta, e mulheres fortes, destemidas e complexas são presença inesquecível em trabalhos posteriores, como “A Dama do Lotação” (1978), “Os Sete Gatinhos” (1980), “Rio Babilônia” (1982) e “Matou a Família e Foi ao Cinema” (1991) — diferenciando Neville D’Almeida de boa parte de seus colegas de geração ou mesmo de cineastas mais jovens do sexo masculino, cujas obras são recorrentemente objeto de crítica, com razão, devido a suas perspectivas excessivamente masculinizantes e machistas.

A personagem principal de “Redenção”, envolta em um triste e nebuloso passado, precisa enfrentar as limitações desse sexismo enraizado na sociedade brasileira para atingir seu objetivo e dar à cabo sua vingança. Nesse sentido, é um dos filmes mais diretos de D’Almeida, e herda o componente trágico que o diretor herdou de suas adaptações de Nelson Rodrigues e com o qual aprendeu boas lições.

“O Poder Negro” (2018)

3'
Direção: Neville D’Almeida
Disponível em:
vimeo.com/601337948

Neville D’Almeida intitulou de “O Poder Negro” um trecho de seu primeiro longa, “Jardim de Guerra” (1968), que em 2018 decidiu selecionar e isolar enquanto um curta-metragem. O espectador familiarizado com a sequência entende o porquê: ainda que ela funcione de maneira magistral quando integrada ao contexto maior em “Jardim de Guerra”, sua força é suficiente para que ela se sustente por si só.

No momento em questão, um personagem sem nome, interpretado por Antônio Pitanga, profere um inflamado discurso em meio a uma festa de apartamento da classe média carioca — o estrato social que os jornalistas e cronistas das décadas de 1960–70 batizaram de “esquerda festiva”. Pois justamente em meio à “festiva”, o personagem vivido por Pitanga decide falar sério: entoa um poderoso monólogo (oriundo do roteiro da parceria D’Almeida-Jorge Mautner) sobre a violência secular existente na questão racial brasileira, cujas reverberações jamais deixaram de se fazer presentes nas construções sociais do passado e do presente.

Neville D’Almeida e Jorge Mautner, que haviam convivido em Nova York durante o período em que o cineasta morou na cidade norte-americana (que durou de 1964 a 1968, com pelo menos uma breve visita ao Brasil em 1966), estavam assumidamente inspirados pelo movimento Black Power estadunidense quando elegeram o assunto para ser um dos muitos tópicos abordados por “Jardim de Guerra”. A própria entrega de Pitanga, somada aos argumentos, tem ecos de Malcom X. No entanto, o problema, mesmo universal, é absolutamente concreto à realidade brasileira, e em toda a extensão do trecho que se tornou “O Poder Negro”, não parece jamais uma pauta importada. É, sem dúvidas, um dos mais célebres e emblemáticos momentos da obra do diretor.

“Humanos Causa” (2019)

20'
Direção: Neville D’Almeida
Disponível em:
vimeo.com/601333904

Livre adaptação de trecho do espetáculo teatral “Epístolas para o Brasil Humanis Causa”, criado e dirigido por Thiago Justino, “Humanos Causa” mantém a ambientação e a linguagem assumidamente quasiteatrais que pode ser visto em trabalhos anteriores de Neville D’Almeida, como “Hoje é Dia de Rock” (1999) e até mesmo “Navalha na Carne” (1997), em alguns aspectos. Existe na linha direta da tradição teatral da obra do diretor, cujo precedente em sua filmografia data da adaptação de “Os Sete Gatinhos”, de Nelson Rodrigues, em 1980.

Uma câmera livre e indomável, que alterna entre eixos com rapidez, flutua por entre as diversas pessoas em cena enquanto capta a população de uma cidade fazendo reivindicações por seus direitos, simultaneamente enfrentando questões que fazem com que eclodam discussões internas. A encenação, tal qual os movimentos de câmera, é pulsante e imprevisível, com direito a uma trilha musical que evidencia o aspecto eminentemente político da obra.

Dentre os tópicos discutidos pelos personagens — e pelo filme, portanto — estão questões raciais que englobam o preconceito com o negro e com o indígena, assuntos que aparecem, em tom de denúncia, com regularidade nos trabalhos de D’Almeida desde seu primeiro longa. Apesar de celebrar certos aspectos da brasilidade, como evidenciado com a otimista “Aquele Abraço” de Gilberto Gil nos créditos finais, “Humanos Causa” derruba por terra o mito de um Brasil feliz, tranquilo e harmoniosamente miscigenado, e coloca a luta pelos direitos humanos em primeiro plano para que se possa, eventualmente, chegar em um país ideal.

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Igor Nolasco

Página atualmente dedicada a reunir minha produção de textos sobre cinema que, hoje, não encontram-se mais disponíveis em seus veículos originais.