“O Cangaceiro” (1953): o triunfo da Vera Cruz (18/01/2021)
Texto originalmente publicado no extinto portal Utopique, em 18/01/2021.
Antes do Cinema Novo, que pregava pela liberdade de se filmar com “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, se aproveitando ao máximo de locações externas e de subversões estéticas, houve, no Brasil, uma série de tentativas de se emplacar um sistema de estúdio para a produção de filmes que se equiparasse aos moldes europeus ou hollywoodianos. Sendo os principais polos da indústria do cinema no país até então, o Rio de Janeiro e de São Paulo foram palcos para esses experimentos. Um dos mais notórios dentro do âmbito paulista foi a Vera Cruz, companhia cinematográfica fundada por produtores estrangeiros e magnatas locais e que, dado o alto custo e retorno insuficiente em suas produções, existiu durante apenas cinco anos. Não obstante, produziu mais de vinte filmes nesse breve período, e conseguiu imprimir seu nome na história do cinema brasileiro.
O objetivo da empreitada era dar a luz a produções brasileiras que, ao olhar de seus realizadores (e também da crítica e do público), estivessem à altura do cinema dos EUA e da Europa ocidental. Essa visão, já de antemão submissa a um complexo de inferioridade em relação ao cinema brasileiro (que parece considerar o subdesenvolvimento de suas condições como sinônimo de baixa qualidade), fez com que a Vera Cruz empregasse, em suas equipes técnicas, um contingente majoritariamente estrangeiro de profissionais (tendo como figura central um brasileiro que passara anos radicado na França, Alberto Cavalcanti) e buscasse trazer para as telas temáticas e ambientações relativas à cultura brasileira diluídas estética e narrativamente em moldes europeizantes ou americanizantes. É o caso de O Cangaceiro.
Dirigido pelo cineasta Lima Barreto (não confundir com o escritor de mesmo nome), o longa-metragem de 1953 é uma das primeiras produções de maior porte a focar no cangaço nordestino. Por isso, é considerado percursor de uma tendência de filmes de cangaço que viria a estourar principalmente a partir de seu lançamento. Esses longas, que em linguagem buscam consciente ou inconscientemente adaptar a um cenário brasileiro as convenções do faroeste (western) norte-americano, vieram a ser designados por alguns como “nordesterns” (ou “westerns feijoada”, em uma denominação que expande seu escopo também para filmes ambientados fora da Região Nordeste).
Aqui, o ponto de partida é a história do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, conhecido nacionalmente como Lampião. Na produção de Lima Barreto, o personagem é renomeado como Galdino e vivido pelo ator Milton Ribeiro, que se tornaria um nome frequente na onda de “westerns feijoada” que deslancharia em seguida. Apesar de ser a figura mais chamativa em tela (e uma as primeiras coisas mostradas por O Cangaceiro é o bando de Galdino chegando a uma cidade), Galdino não ocupa uma posição de protagonismo. A esta, fica mais próximo o personagem de Teodoro, interpretado por Alberto Ruschel: um integrante do bando de Galdino que insurge-se contra seu comandante, o que desagua numa dicotomia clássica de mocinho contra vilão. Compondo o quadro, Marisa Prado faz Olívia, que ocupa o arquétipo de par romântico para o galã Teodoro.
Hoje, passadas décadas, O Cangaceiro se destaca pelo que lhe rendeu críticas pelos partidários do Cinema Novo: suas escolhas estéticas bem demarcadas para representar o cangaço, com uma inspiração latente nos westerns da Hollywood clássica. Críticas aos aspectos de verossimilhança do longa (capitaneadas na década de 1960, inclusive, pela figura de Glauber Rocha) apontam, entre outras coisas, que o filme, não exibe em tela um bioma remotamente próximo ao da caatinga, que os cangaceiros da história andam de cavalo enquanto os da realidade não o faziam e, claro, que grande parte dos personagens em tela fala com um sotaque demarcado paulista ou carioca — afinal, o longa foi rodado no estado de São Paulo.
Para o bem ou para o mal, O Cangaceiro foi o maior triunfo da Vera Cruz durante sua efêmera existência. Distribuído internacionalmente com sucesso pela Columbia Pictures (que manteve todo dinheiro por essa ação, ou seja, sem dar retorno à produtora), foi exibido no prestigioso Festival de Cannes, onde ganhou dois prêmios: o de Melhor Trilha Sonora e outro, estranhíssimo, de “Melhor Filme de Aventuras”. É, hoje, o filme mais relembrado da companhia paulista, que também é responsável por Tico-Tico no Fubá (1952) e Sinhá Moça (1953). Se o projeto da Vera Cruz de fazer um cinema brasileiro nos moldes europeus ou norte-americanos não teve grande longevidade e possui motivações possivelmente questionáveis, ao fim do dia ele gerou filmes memoráveis e de grande importância para o cinema brasileiro, como no caso do “western feijoada” de Lima Barreto.