O vídeo no cinema de Cavi Borges (22/07/2020)

Igor Nolasco
9 min readOct 18, 2023

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Texto originalmente publicado pela revista digital Contrabando, em 22/07/2020, em sua 2ª edição, sob a rubrica “A Maldição do Vídeo”.

É no Rio de Janeiro do final dos anos 1990 que surge a figura de Cavi Borges no meio cultural da cidade que, desde o início, foi um dos principais palcos do fazer cinematográfico no Brasil. Na cronologia da história do cinema brasileiro, isso coincide com o período da chamada “retomada”, caracterizada pelo retorno de uma produção numerosa de filmes brasileiros após anos de escassez causados pelo encerramento das atividades da companhia estatal Embrafilme, produtora ou co-produtora de uma parcela significativa dos longa-metragens que eram exibidos em circuito comercial. Ex-judoca, em 1997 Borges funda a videolocadora Cavídeo no bairro do Humaitá, estabelecimento que ainda existe, apesar do desaparecimento massivo das videolocadoras em todo o mundo em decorrência da popularização do modelo de distribuição de filmes por streaming e video on demand. O colunista Marcus Faustini, do O Globo, compõe uma imagem sólida sobre o período inicial da Cavídeo em seu texto No brilho dos 20 anos, de 2017:

[…] Logo no começo de 1999, a locadora já era reconhecida como um lugar para quem buscava filmes raros. […] Num breve pulo de tempo, ali pelos anos [sic] 2004, o empreendimento já trilhava o caminho que o trouxe até aqui — havia se tornado um espaço para quem precisava de apoio no uso de projeções de vídeos em peças de teatro, performances e shows.

Eventualmente a Cavídeo lança-se em um projeto mais ambicioso, se tornando uma produtora audiovisual. Cavi Borges, o homem por trás da locadora, passa a ser cineasta e produtor. Suas incursões enquanto realizador já podem ser vistas desde 2002 — antes do surgimento do braço de produção da Cavídeo — com o curta-metragem Sem Saída.

Em 2006 faz Cinema Marginal, homenagem ao movimento de mesmo nome. O filme de 12 minutos tem como base fotografias e trechos retirados da primeira edição do livro Cinema de Invenção, de Jairo Ferreira, intercalados com fragmentos dos filmes que são citados por Jairo (e por Cavi, em suas próprias intervenções para cobrir as lacunas deixadas pelo texto-fonte: nos minutos finais, nomes de diversos cineastas pipocam na tela, como que para dizer: tudo isso e muito mais). As experimentações com o que está em tela, a utilização de filmes de outrem enquanto imagem de arquivo, as colagens de pós-produção que mesclam trechos do livro de Jairo Ferreira fazem com que, em termos de linguagem, o Cinema Marginal de Cavi Borges aproxime-se do vídeo-ensaio; não do vídeo-ensaio didático, mas do vídeo-ensaio autoral.

A partir daí torna-se um curtametragista prolífico, com pelo menos oito curtas realizados entre 2007 e 2010. Como é a tendência entre curtametragistas experimentais, em poucos anos já havia lapidado uma obra relativamente numerosa.

Com curtas originalmente feitos para o suporte 35 mm, foi sobretudo após a popularização do vídeo enquanto ferramenta para o fazer cinematográfico no Brasil que a produção de Cavi Borges decolou. Não apenas em minutagem, aderindo aos longa-metragens (que assina como diretor ou, muitas vezes, co-diretor), como também no escopo temático escolhido para cada obra. Não por acaso a difusão da filmagem digital, no mundo inteiro, foi um veículo que possibilitou com que realizadores experimentais pudessem trabalhar em maior quantidade e com mais facilidade na realização de seus exercícios audiovisuais.

Vida de Balconista (2009) é um bom ponto de partida para se discutir os longas de Cavi Borges. Rodado na própria loja da Cavídeo na Cobal Humaitá, o filme é um apanhado de esquetes que se desenrolam tendo como base a rotina idiossincrática de um balconista de videolocadora que sonha em se tornar cineasta, espelhando-se em Quentin Tarantino.

Não destituído de tons autobiográficos evidentes, Vida de Balconista é um filme barato, rodado em uma única locação, mas que nem por isso se priva de abordagens visuais que saem do padrão. A que mais chama a atenção é o uso de uma lente fish-eye durante algumas sequências extensas do longa, a partir do próprio início do longa. A distorção, compressão do espaço pela visão da lente atribui às situações vividas pelo personagem principal uma sensação de sufoco em meio a esquetes que, analisadas friamente, poderiam ser facilmente atribuídas à tradicional comédia televisiva brasileira. Remete, não obstante, a uma câmara de segurança ou a um olho mágico, que dá ao espectador a sensação de vislumbrar aquele microcosmo por não mais que uma fresta.

O longa-metragem de Borges é intrinsecamente atrelado ao vídeo. Não apenas por ter sua ação ambientada na vídeolocadora, ambiente onde o filme, o cinema, é consumido por meio do vídeo, como pela forma que utiliza para estruturar suas imagens. Vida de Balconista é um filme digital, filmado em digital, que não se envergonha de seu baixo orçamento ou da ausência do grão da película; apropria o vídeo enquanto parte indissociável do que está em tela. A utilização de lentes visivelmente diferentes entre si, o que a princípio pode causar um estranhamento espectatorial, é feita de forma abrupta, proposital.

Analisando-se o contexto em que o longa está inserido, ao fim dos anos 2000, se enxerga nisso uma outra dimensão: a absorção da cultura do videoclipe (intencionalmente ou não) pelo cinema/audiovisual de Cavi Borges. A música, enquanto arte, absorveu a praticidade, a facilidade e o preço vantajoso do vídeo digital muito antes do cinema (fala-se aqui de indústria, e não de nichos ou casos individuais). Ao final dos anos 2000 os parâmetros para o videoclipe musical no século XXI já estavam bem definidos e massificados, tendo como parte indissociável de sua estética o suporte digital. Ademais, até meados da década ainda havia na indústria do cinema mundial uma resistência forte, preciosista, ao dito suporte.

Mesmo do cinema estadunidense, o mais hegemônico e endinheirado do mundo, o 35 mm ainda permanecia como preferência quase inflexível, à exceção de realizadores formalisticamente audaciosos, como Michael Mann. Presume-se que para cinemas terceiromundistas, como o brasileiro, a praticidade e a facilidade iriam se sobrepor ao preciosismo. Ledo engano; vê-se a resistência da cinematografia oficial brasileira ao digital através do maior festival de cinema do país, o Festival de Brasília, que até os anos 2010 não aceitava filmes em suporte digital para exibição competitiva.

Que o cinema brasileiro tenha tido tanta resistência a forma mais práticas e econômicas de realização é algo que não encontra outras explicações para além de purismo e teimosia. Sobretudo quando, enquanto cinema terceiromundista, sempre esteve inerentemente atrelado ao subdesenvolvimento. Desde o início, no Brasil, filmou-se sob as piores condições, com os piores e mais baratos equipamentos (os únicos, muitas vezes, que chegavam ao país). Medir os padrões técnicos do cinema brasileiro pelos padrões dos EUA e da Europa ocidental é de uma falta de compreensão ímpar. O cineasta independente dos EUA tem e sempre teve mais condições de filmar do que o mais institucional e endinheirado dos cineastas brasileiros.

Nessa recusa inicial ao chamado do digital, a cinematografia brasileira oficial optou pela ignorância polida do reconhecimento de novos meios, eclipsando as dificuldades históricas de se filmar no país. E antes mesmo do digital ser formalmente aceito pela instituição do cinema brasileiro, Cavi Borges já estava filmando em digital. Talvez não tão autoconsciente de sua subversão quanto um Mann, Borges surge como, guardadas as devidas proporções, um equivalente brasileiro ao diretor de Miami Vice no que se refere à exploração das possibilidades da imagem digital em detrimento ao seguimento cego de uma tradição purista.

Também cabe acrescentar que o filme é uma espécie de continuação, conclusão da série de TV Mateus, o Balconista (2008), que assim como o longa é idealizada e co-dirigida por Borges. Se para uma visão desinteressada isso pode parecer apenas um reaproveitamento de ideias, o que há aqui é na verdade o intertexto (TV/Cinema/Audiovisual), que retornaria em algumas outras obras de Cavi.

Cidade de Deus: 10 Anos Depois, lançado comercialmente em 2015, seguramente é o longa-metragem de Borges mais conhecido pelos espectadores que assistem a ele mesmo sem remetê-lo a um autor, sobretudo depois de ter sido veiculado em plataformas de streaming como a Netflix. O interesse no filme de Kátia Lund e Fernando Meirelles acaba fazendo com que o espectador desavisado entre em outro cinema, o de Cavi Borges.

Mesmo tendo um direcionamento bem específico enquanto tópico (a vida dos atores que participaram de Cidade de Deus 10 anos após seu lançamento), o documentário não deixa de envolver temáticas relativamente recorrentes nos trabalhos de seu diretor. A vida nas periferias do Rio de Janeiro, protagonizada por artistas em busca de um lugar ao Sol, já havia sido registrada em outro documentário: L.A.P.A. (2007). Ao invés do cinema, têm-se aqui o rap enquanto a arte que move os personagens filmados pela câmera de Borges.

10 Anos Depois retrata a vida de indivíduos que foram ludibriados pela engrenagem da cinematografia oficial brasileira (a mesma que até a década de 2010 não aceitava filmes em suporte digital para concorrer em seus festivais) e utilizados de forma instrumental como mão de obra cênica para a ambientação do favela movie típico da retomada do cinema nacional (o que a revista ÉPOCA viria a nomear de “cosmética da fome”, em oposição à “estética da fome” glauberiana). L.A.P.A. se debruça sobre figuras que saem dos bairros periféricos do Rio de Janeiro e encontram, no bairro que titula o filme, um espaço comum para o compartilhamento da arte lírica e musical popular.

Há, contudo, um contraponto entre os dois filmes: se L.A.P.A. registra o fervilhante início de um sonho, a busca pela realização, 10 Anos Depois mostra o que acontece quando o sonho dá errado e é esquecido. Opostas em perspectiva, as duas produções podem ser vistas como complementares. Os temas englobados por elas também estão presentes em curta-metragens de Borges anteriores e posteriores ao L.A.P.A.

A temática desses dois filmes já seria suficiente para lhes atrelar ao rótulo de “subversivo”. Afinal, retratam a vida das figuras entrevistadas de dentro pra fora. A exposição das situações vividas por essas personagens é feita de forma crua, sincera, em oposição, por exemplo, ao projeto cinemanovista, que se apropriava da realidade das periferias cariocas (em filmes como Cinco Vezes Favela, idealizado pelo Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes) para provar um ponto, a partir de uma determinada perspectiva intelectual.

Se o projeto do Cinema Novo falhou e foi eventualmente dissolvido porque filmes que teoricamente sobre o povo não chegavam ao povo, pode-se fazer a provocação de que, nesse sentido, talvez filmes como L.A.P.A. e 10 Anos Depois talvez tenham sido mais bem sucedidos. Não que tenham sido assistidos massivamente — cinco décadas depois do Cinema Novo, a distribuição permanece como sendo um dos grandes problemas seculares do cinema brasileiro — mas parecem ser de uma franca sinceridade na abordagem temática, o que muitas vezes não pode ser dito sobre algumas das obras cinemanovistas ambientadas na periferia carioca e boa parte dos favela movies da retomada.

Não obstante, para além dos temas abordados, os dois documentários de Cavi possuem a crueza (não necessariamente atrelada a uma falta de estilo) da filmagem digital. Se assistidos de relance por um espectador desprevenido, poderiam ser facilmente confundidos com uma reportagem especial feita para canais de TV fechada (especiais que talvez figurem a maior parcela numérica da produção de documentários no Brasil contemporâneo). Isso está longe de ser um demérito: essa crueza, essa naturalidade na imagem, na cor e na temática, mostram o domínio de uma das possibilidades do vídeo.

Se a partir disso pensa-se que o domínio de uma estética crua destitui o realizador da habilidade em lidar com imagens mais estilizadas, cai-se, novamente, em um palpite falho. O curta Cinema Marginal já é uma pequena prova do que Borges é capaz de fazer, sobretudo da montagem, para angariar a linguagem de seus filmes para além do convencional; Rosemberg: Cinema, Colagem e Afetos (2017) é um retorno a esse estilo de experimentação, encontrando na figura de Luiz Rosemberg Filho não apenas um objeto fílmico a ser documentado e ter sua trajetória analisada, como também um referencial em linguagem (a colagem do título aparece no longa de Cavi como parte essencial para a estrutura do filme) que não é privada de uma admiração pessoal (Rosemberg é creditado como “consultor afetivo” em Um Filme Francês, longa de ficção que Borges lança em 2015).

O “Michael Mann carioca” é responsável pela produção e distribuição não apenas de seus próprios filmes, como de obras de outros realizadores (como é o caso de “Neville D’Almeida — Cronista da Beleza e do Caos” [2018], de Mário Abbade). Figura recorrente no cenário cultural do Rio de Janeiro, mesmo em eventos não necessariamente relacionados ao cinema, Cavi Borges talvez não tenha noção da dimensão de sua própria obra. Esta, contudo, é uma janela para as transformações pelas quais o cinema brasileiro passou entre os primeiros vinte anos do século XXI. Ainda mantém sua videolocadora no Humaitá, uma das últimas do Rio de Janeiro. O vídeo, acima de tudo, é parte indissociável de sua obra fílmica.

Se o protagonista autobiográfico de Vida de Balconista mira em Tarantino, na visão idealizada de sair do papel de balconista de videolocadora e tornar-se um cineasta de sucesso nos moldes tradicionais da indústria, é possível dizer que o cinema de Cavi acerta em aspectos bem diferentes dos que consagraram o diretor de Era Uma Vez… Em Hollywood, e não por isso menos interessantes ou dignos de nota.

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Igor Nolasco

Página atualmente dedicada a reunir minha produção de textos sobre cinema que, hoje, não encontram-se mais disponíveis em seus veículos originais.